A família revisitada no curso do Código Civil vigente.

Jones Figueirêdo Alves

Ao tempo em que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, anunciou, durante congresso jurídico feito em Portugal, a criação de uma comissão de juristas, no presente semestre, para elaborar proposta de atualização do Código Civil de 2002, sob a presidência do ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, retenha-se, de logo, que o seu Livro IV — Direito da(s) Família(s), reclama, de pronto, importantes revisitações.

Bem a propósito, o corrente ano doutrinário iniciou-se com um artigo, de nossa autoria, A família pronta ao seu futuro sob as perspectivas para 2023″ (ConJur, 1/1/23), assinalando o desafio atual de consolidar as novas tendências do Direito das Famílias e efetivá-las, com a maior extensão de suas realidades existenciais, incluindo-as, pois, na ordem jurídica codificada, em uma visão operativa dos novos paradigmas  [1]. Não há negar oportuna a leitura do texto.

Também a esse tempo, desponta a atual chamada relatorial do Estatuto das Famílias do Século XXI, apresentado pelo PL nº 3.369/2015, de autoria do deputado paulista Orlando Silva, com proposição sujeita à apreciação conclusiva pelas comissões e aguardando o parecer do relator na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR). Designada relatora a deputada Daiana Santos, no último dia 26 de maio.

Simples assim: o Estatuto das Famílias do Século XXI prevê princípios mínimos para a atuação do poder público em matéria de relações familiares. Em seu artigo 2º, define-se que: “São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”. No mais, o poder público proverá reconhecimento formal e garantirá todos os direitos decorrentes da constituição de famílias na forma definida no caput do artigo 2º [2].

De tal ordem conceitual de família(s), contida no referido PL nº 3.369/15, depreende-se a consequência do reconhecimento, contido em sede do Código Civil, como locus próprio de regulação dos seus direitos e deveres.

De fato, é salutar lembrar da necessidade, sempre cogitada, de serem estabelecidos conceitos precisos, quanto às relações jurídicas familiares, com o interesse de o Estado garantir-lhes a devida proteção e o bem da segurança jurídica.

Recentemente, “diante de um tempo qualificado de ausência de uma resposta legislativa sobre o conceito abrangente de parentalidade”, a Lei nº 14.457, de 21/9/2022, houve de oferecer ao Direito de Família, “um fidedigno e expresso significado”, indicando no parágrafo púnico do seu artigo 1º:

“Para os efeitos desta Lei, parentalidade é o vínculo socioafetivo maternal, paternal ou qualquer outro que resulte na assunção legal do papel de realizar as atividades parentais, de forma compartilhada entre os responsáveis pelo cuidado e pela educação das crianças e dos adolescentes, nos termos do parágrafo único do artigo 22 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente” [3].

Realmente. Uma bela contribuição legal ao Direito familista, valendo sublinhar que a reportada Lei nº 14.457/2022 opera somente nas relações trabalhistas ao instituir o Programa Emprega + Mulheres, destinado à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho por meio da implementação de determinadas medidas, incluindo, então, o apoio à parentalidade na primeira infância.

Deixou o Código Civil de adiantar-se em suprimento de tais lacunas conceituais, a exemplo do ausente significado jurídico da socioafetividade. Anota-se que a expressão foi citada pela primeira vez, em 1992, pelo jurista Luiz Edson Fachin, atual ministro do STF, em sua obra Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida; entendendo-se, hoje, também extraída do elemento “outra origem” contido no artigo 1.593 do Código Civil, acerca do parentesco civil, antes apenas pontuado pelo instituto da adoção.

Quanto à própria adoção, embora mudanças pontuais tenham a disciplinado, cumpre observar que o Código Civil deve revisitar o tema, quando mais das vezes possa operar-se uma adoção sem a ruptura do vínculo biológico, a saber de os pais adotivos serem apenas socioafetivos, sem a perda da convivência com a família de origem.

A própria questão da parentalidade, cuidada pela novel Lei 14.457/2022, chama a atenção do Código Civil vir a tratá-la textualmente, com as conceituações necessárias, observando, destarte, a pluriparentalidade, no plano da família; consabido da adição de uma paternidade familiar social, onde pessoa próxima, mas sem o vínculo natural, exerça papel paterno ou maternal, melhor que os pais biológicos.

Quando o Código Civil completou, em 11 de janeiro passado, 20 anos de sua vigência, impende observar que a sua atualização se refere estritamente a questões pontuais, sempre em consonância de contextos sociais e diante de problemas novos, como bem situou o jurista Carlos Eduardo Elias de Oliveira, consultor legislativo do Senado (Agência Senado, 10/1/22). Entre os problemas novos, as instigantes questões advenientes da parentalização, da bioética e da inteligência artificial e no âmbito das sucessões, a herança digital.

De ver, aliás, nesse curso temporal e diante de um Código alterado, desde então, por mais de cinquenta normas; como se sobressai do portal normas.leg.br [3] em apuração das normas federais na linha do tempo, com suas compilações estruturadas; no tocante ao Direito da Família apenas cinco novas leis ganharam destaque.

Foram elas:

1) A Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008, alterando os artigos 1.1583 e 1.584, para instituir e disciplinar a guarda compartilhada;

2) A Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009, dispondo sobre a adoção, com alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) e revogando disposições atinentes do Código Civil;

3) A Lei nº 12.344, de 9 de dezembro de 2010, aumentando a faixa etária em obrigatoriedade do regime de separação de bens no casamento (nova redação do inciso II do artigo 1.641, CC);

4) A Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2010, alterando os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 do Código Civil, para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispondo sobre sua aplicação; e finalmente,

5) A Lei nº 13.715, de 24 de setembro de 2018, alterando o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e o Código Civil, para dispor sobre hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente.

Cumpre observar que duas dessas leis cuidaram de tratar sobre a guarda compartilhada, e ao pretender a Lei nº 13.058/2010 melhor explicitar o tema, não logrou, todavia, a melhor solução. Imperam discussões e dissensos a respeito da forma adequada de dotar a guarda, unilateral ou não, de mecanismos ensejadores de eficiência ao pleno exercício do poder familiar, como pondera a jurista Maria Rita de Holanda, autora da obra Parentalidade. Entre a Realidade Social e o Direito (2021) [5].

Por certo também se dirá, e há quem sustente, que o conceito de “guarda” também pode significar vigília, o dever de cuidado, dentro das latitudes e deveres do devido exercício do poder familiar, obrigando também aquele não guardião direto (diante de uma guarda unilateral), interimplicado que se acha pela concepção de uma guarda indireta.

Com simetria ao axioma bíblico, “se Deus não guarda a cidade, em vão vigia a sentinela” (Salmos 127,1), pelo qual o governo de Deus é soberano e o esforço humano seria inútil sem a Sua proteção, a construção de uma casa (lar) pertence ao casal, sendo que os filhos de ambos representam essa casa construída, obrigando ambos os pais à proteção, mediante um esforço útil conjunto e continuado.

Agora, com um novo cenário legisferante, avizinhado por proposições advenientes da comissão constituída para a atualização do Código Civil, impende contextualizar, no que interessa, os atuais projetos legislativos em tramitação. Exemplifica-se:

1) Na Câmara dos Deputados, diversos projetos legislativos tramitam em proposito de dinamizar o direito de família. O mais recente, PL 35/2023, de autoria do deputado paulista Fernando Marangoni, acrescenta parágrafo único ao artigo 842 do Código Civil para permitir um novo ajuste sobre o destino dos bens imóveis privados e disponíveis do casal divorciado, após homologada judicialmente a partilha por ocasião do divórcio consensual. O parlamentar autor do projeto, após tratar sobre a teoria dos negócios jurídicos processuais, trazida pelo CPC de 2015, propõe que “diante de uma demonstrada dificuldade do cumprimento do acordo na forma inicialmente pactuada”, a alteração do ajuste poderá ser feita independente de uma ação anulatória do acordo antes firmado, por não decorrer de vicio de consentimentos e por não existir litígio entre as partes, assentando-se a alteração no princípio da autonomia da vontade das partes [6].

2) Em termos de consensualidade outro interessante projeto, advém do Senado, o PLS 2.569/2021, da senadora Soraya Thronicke, que amplia as hipóteses do divórcio consensual, da separação consensual e da extinção consensual da união estável para os casos em que haja nascituro ou filhos menores, incluindo a possibilidade de realizar-se extrajudicialmente, com significativas mudanças no CPC e no Código Civil. Do estatuto material, admissível a alteração do regime de bens, dispensa-se a autorização judicial e a motivação fundada do pedido, mediante simples requerimento junto ao Ofício de Registro Civil, com maior simplificação, embora exigindo-se, a tanto (!) uma escritura pública (nova redação ao §2º do artigo 1.639, CC) [7]. O projeto, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, aguarda desde 28 de março deste ano a designação de relator.

3) O PL nº 5.774/2019, do deputado Afonso Motta, altera o artigo 1.837 do Código Civil para o caso de uma pessoa sem filhos morrer deixando cônjuge; mãe e/ou madrasta; e pai e/ou padrasto, a herança ser dividida em partes iguais entre cada um deles. Disciplina a concorrência entre cônjuge e ascendentes, considerando a multiparentalidade [8].

4) O PLS nº 90/1999 tratou da reprodução assistida e aprovado no Senado em 2003, tem sua análise na Câmara sob o nº 1.184/2003, aguardando desde 31 de janeiro deste ano a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) [9]. O texto recebe severas críticas quando o projeto proíbe a gestação por substituição, remove o anonimato dos doadores de gametas, limita a fertilização de apenas dois óvulos e obsta a biópsia embrionária [10].

5) Tramita também o Projeto de Lei nº 1.851/2022, de 2 de julho. Ele altera o artigo 1.597 do Código Civil, com a inserção de dois parágrafos, dispondo sobre o consentimento presumido de implantação, pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, de embriões do casal que se submeteu conjuntamente à técnica de reprodução assistida e, ainda, define a responsabilidade das clínicas médicas, centros ou serviços responsáveis pela reprodução assistida.

“A grande lacuna legislativa no nosso ordenamento jurídico sobre a reprodução assistida não encontra explicação lógica e razoável em debate algum sobre o tema”, denunciou a senadora Mara Gabrilli na justificação do seu projeto. Uma vez aprovado, será um importante avanço legislativo [11].

Diante dos vários projetos legislativos em curso, quando proposta a atualização do Código Civil, urgente é pensar nos referidos projetos, para serem discutidos e agasalhados no Código em revisão e para além disso, na regulação exauriente dos temas mais delicados em Direito de Família.

De imediato, um deles, o direito de visita que não pode amesquinhar o direito do pleno exercício do poder familiar.

Veja-se a recente decisão do juiz Luiz Pinto, titular da Vara Única da Comarca de Xapuri, no Acre, quando ao regulamentar as visitas ao filho por parte do genitor, ausente de uma convivência paterno-filial, impôs ao pai omisso multa de R$ 10 mil por cada visita não realizada. A decisão apresenta-se relevante em seu efeito profilático e inibitório. Embora não seja exigível a afetividade, o cuidado, todavia, é impositivo, em proveito do desenvolvimento saudável do infante. No caso, o genitor não pode desertar das suas responsabilidades parentais.

Em boa medida, a técnica dissuasória da aplicação de multas, incursiona no Direito de Família, em busca de inibir determinadas omissões aos deveres do poder parental, com a coercibilidade ditada pela imposição da penalidade monetária.

Interessante é que tratei desse tema, precisamente há dez anos, em site do IBDFAM (30/8/2013), no artigo intitulado “Multa$ Coercitiva$” [12].

O elemento convivência tem caráter não apenas indutor de afetos, mas o da sua valoração moral-educacional. Os pais são responsáveis, em medidas iguais, pelos filhos que geram, destinando-lhes um melhor futuro, qualidade de vida e sobretudo, garantindo-lhes dignidade.

Há uma “prevalência do direito de toda criança à convivência familiar”, diga-se com ambos os pais (STJ-RESp. nº 1.481.531).

As atuais gerações, carentes de seus pais, são condenadas à tragédia social da violência orientada pelas desafeições. Quem não ama a si mesmo, por não ser suficientemente amado, não consegue amar o próximo.

O Direito de Família é afeto, cuidado e cooperação. A sua atualização no Código Civil terá de observar essas diretivas fundamentais.


[1] ALVES, Jones Figueirêdo. A família pronta ao seu futuro sob as perspectivas para 2023. Consultor Jurídico, em 01.01.2023. Web: https://www.conjur.com.br/2023-jan-01/processo-familiar-familia-pronta-futuro-perspectivas-2023.

[2] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto das Famílias do Século XXI. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1402854&filename=Tramitacao-PL%203369/2015.

[3] LEI 14.457/2022. Web: https://www.inºgov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.457-de-21-de-setembro-de-2022-431257298.

[4] Web: https://normas.leg.br/busca.

[5] HOLANDA, Maria Rita de. Parentalidade. Entre a Realidade Social e o Direito. Editora Fórum (SP). Coleção Fórum Direito Civil, vol. 7. Prefácio Paulo Lobo; 2021, 282 p.

[6] PL nº 35/23. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2230883&filename=PL%2035/2023.

[7] PL nº 2.569/2021. Web: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/149143.

[8] PL nº 5.774/2019. Web:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1828271&filename=PL%205774/2019.

[9] PL nº 1.184/2003. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=118275.

[10] PLS nº 90/1999. Web:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=137589&filename=PL%201184/2003.

[11] PLS nº 1.851/2022. Web; https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9180662&ts=1657662548729&disposition=inline.

[12] ALVES, Jones Figueirêdo. Multa$ coercitiva$ Web: https://ibdfam.org.br/artigos/906/Multa$+coercitiva$.


Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jul-16/processo-familiar-familia-revisitada-curso-codigo-civil-vigente

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