DESJUDICIALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO CIVIL – As razões contidas no PL 6.204/19¹

Joel Dias Figueira Júnior[2]

 Mesmo em tempos de pandemia, os debates jurídicos sobre temas relevantes permanecem – felizmente – em destaque, desta feita através de inúmeras lives que estão sendo postadas no espaço digital, além de escritos que continuam sendo publicados em sites especializados, periódicos diversos e de novas obras jurídicas.[3]

O tema alusivo à desjudicialização tem recebido destaque em razão de sua atualidade e importância, com enfoque em debates acadêmicos, sobretudo no que se refere aos principais projetos de lei que tramitam atualmente no Congresso Nacional, motivo pelo qual entendemos oportuno abordar alguns pontos do PL 6.204/19, apresentado ao Congresso Nacional em novembro passado pela Advogada e Senadora Soraya Thronicke.

Esta breve reflexão tem por objetivo aclarar as verdadeiras razões político-jurídicas contidas no PL 6.204/19,[4] servindo também para rebater, fundamentadamente, algumas críticas despropositadas ou equivocadas que estão sendo dirigidas contra texto legislativo, especialmente aquelas dessintonizadas com os desígnios do Processo Civil contemporâneo no que concerne a revisitação do conceito de “jurisdição”, concebida com a flexibilização do princípio da inafastabilidade (ampliação do espectro da tutela jurisdicional – juiz estatal e juiz privado/arbitragem) e dos métodos não adversarias de resolução de controvérsias, com ênfase na extrajudicialização e nas técnicas de autocomposião, forjadas nos ensinamentos de Mauro Cappelletti que as denominou de justiça participativa e coexistêncial, tudo recepcionado como norma fundamental do processo civil no Código de 2015 (CPC, art. 3º).

Como consectário lógico, a análise do tema passa, necessariamente, por reflexões sobre alguns aspectos atinentes à crise da jurisdição estatal e a sua estreita ligação com o movimento mundial capitaneado pela ONU (Programa ou Objetivos do Desenvolvimento do Milênio – ODM)[5] e as metas a serem atingidas em observância às definições da Agenda 2030 e


[1] Artigo Publicado no periódico jurídico Migalhas, n. 4888 de 7 de julho de 2020.

[2] Pós-Doutor em Direito Processual Civil pela Università Degli Studi di Firenze – Itália.  Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Università Degli Studi di Milano – Itália. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Advogado, Consultor Jurídico e Árbitro. Professor convidado da Escola Superior da Advocacia-SC e Pós-graduação CESUSC. Foi Assessor da Relatoria-Geral da Comissão Especial do Novo Código Civil da Câmara dos Deputados e Presidente da Comissão de Juristas que elaborou o Anteprojeto de Lei que deu origem ao PL 6.204/19; Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Conselho Editorial da Revista Bonijuris e da Revista Direito & Medicina da Editora RT; Presidente Estadual da Associação de Direito de Família e das Sucessões-ADFAS. Autor de trinta e seis obras jurídicas (17 individuais e 19 em coautoria) publicadas pelas Editoras Forense, Saraiva, Revista dos Tribunais, Juruá, dentre outras, além de centenas de artigos publicados em periódicos especializados de circulação nacional e internacional.

[3] Sobre o tema em exame, merece destaque a recentíssima e excelente publicação da Editora Juruá de obra intitulada Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil (2020), em autoria coletiva que conta com a participação de renomados autores nacionais e estrangeiros, sob a coordenação dos ilustres doutrinadores Flávia Ribeiro Pereira e Elias Marques de Medeiros Neto, prefaciada pelas Professoras Teresa Arruda Alvim (BR) e Paula Costa e Silva (PT). A obra é um marco na literatura jurídica, pois aborda com extensão e profundidade aspectos variados do tema em voga, sob o prisma do direito nacional e alienígena, além de trazer em seu bojo interessantes estudos sobre projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, dentre eles o PL 6.204/19.

[4] Participamos dos debates e da elaboração do texto que deu origem ao PL 6.204/19, inclusive como membro integrante da Comissão de Juristas (na qualidade de Presidente), composta pela Dra. Flávia Pereira Ribeiro e Dr. André Gomes Netto.

[5] No ano 2000 a Organização das Nações Unidas estabeleceu o Programa ou Objetivos do Desenvolvimento do Milênio – ODM, com metas a serem atingidas até 2015, mais precisamente uma “agenda global” a ser acolhida e observada pelos países signatários, notadamente aqueles “em desenvolvimento”, com o escopo de atingir-se, universalmente, melhor qualidade de vida  para as pessoas. Os levantamentos realizados em 2015 apontaram, dentre outros fatores, para a necessidade de prosseguimento do “Programa”, desta feita sintonizado com problemas emergentes de ordem social lato sensu, oportunidade em que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD  foi redefinido com novos objetivos e metas (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS) a serem perseguidas e, se possível, atingidas até 2030. Essa “Agenda” ODS é formada por 17 “objetivos” e 169 metas sobre temáticas diversas, tais como a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, questões energéticas e de abastecimento, problemas climáticos, educação, crescimento econômico, melhoramento da eficácia das instituições, acesso à justiça etc. Por seu turno, o Brasil assumiu este “Programa” e, no que concerne ao engajamento do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça por meio de Comitê Interinstitucional encampou a “Agenda 2030” e passou a trabalhar, em especial, com o “Objetivo n. 16” que versa sobre a paz, a justiça e a eficácia das instituições.


o tão decantado IV Pacto Republicano, sem perder de vista, repita-se, os influxos trazidos ao mundo jurídico contemporâneo com o legado deixado pelo citado Mestre fiorentino, através do “Projeto Florença” que redimensionou a concepção de “acesso à justiça”.[6]

Neste cenário multifacetado em que convergem métodos e instrumentos diferenciados de resolução de controvérsias, a desjudicialização exsurge como técnica resolutiva, inclusiva e eficiente para a realização dos direitos dos jurisdicionados, de maneira a satisfazê-los de forma cabal, diga-se de passagem, há muito já implementada com êxito no Brasil.

Outra não é a linha condutora estabelecida no aludido Programa Mundial de Desenvolvimento Sustentável, liderado pela Organização das Nações Unidas, que define objetivos e metas a serem cumpridas até 2030, das quais três delas estão intimamente relacionadas com o tema das Alternative Dispute Resolution (ADR), na exata medida em que convergem para a promoção do Estado de Direito por intermédio da garantia igual e para todos do acesso à justiça (“Meta 16.3”), o que se perfaz por intermédio do desenvolvimento de instituições eficazes, responsáveis e transparentes (“Meta 16.6”), com a garantia da tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis (“Meta 16.7”).

Destarte, a extrajudicialização como técnica resolutiva, inclusiva, participativa e eficiente se afigura como um alvissareiro e iluminado caminho sem volta que há muito o Brasil já vem trilhando e reafirmando cada vez mais a sua exitosa prática, iniciada há 16 anos com a Lei 10.931/2004 que instituiu a retificação do registro imobiliário sem a atuação do Estado-juiz, seguindo-se a edição de tantas outras, tais como: inventário, separação e divórcio (Lei nº 11.441/2007), da retificação de registro civil (Lei nº 13.484/2017) e da usucapião instituída pelo Código de 2015 (art. 1.071 – LRP, art. 216-A).

Neste ambiente contemporâneo mais do que propício, vem a lume o PL 6.204/2019 que traz em seu bojo objetivos claros e bem definidos a proporcionar aos jurisdicionados um eficiente mecanismo de realização de pretensões voltadas à satisfação rápida de créditos representados por dívidas líquidas, certas e exigíveis, de modo mais econômico e simplificado, além de impactar positivamente na redução de expressivo número de demandas que tramitam no Poder Judiciário (em torno de 13 milhões = 17% de todo o acervo), bem como gerar economia para os cofres públicos de aproximadamente 65 bilhões de reais; este resultado decorre também das modificações trazidas aos arts. 9º e 11 da Lei 9.430/96[7], ao permitir que na hipótese de execução extrajudicial ajuizada por pessoa jurídica em que não se localiza bens do devedor suficientes para a satisfação do crédito, o agente de execução suspenda o procedimento e lavre certidão comprobatória do não recebimento de créditos, de maneira que essas perdas possam ser deduzidas como despesas para determinação do lucro real, contabilizando como receita, o que atualmente só se obtém através do ajuizamento de ações executivas unicamente para este fim, sabidamente frustradas, perante o Estado-juiz.[8]

Nada obstante encontrar-se o PL 6.204/19 afinadíssimo com o Programa Mundial estabelecido pelas Nações Unidas, com as legislações europeias de vanguarda sobre o tema e com os anseios do Poder Judiciário traduzidos em trabalhos desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça, além de observar todas as garantias do devido processo constitucional[9], ainda assim algumas críticas tem recebido. É bem verdade que a obra humana é sempre imperfeita, razão pela qual diversas sugestões formuladas para o aprimoramento do texto legal


[6]. Frisamos que o fenômeno do “acesso à justiça” açambarca não só o acesso ao Estado-juiz mas também à jurisdição arbitral e a todos os métodos de resolução de controvérsias, assim compreendidos como “equivalentes jurisdicionais”.

[7] “Dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social, o processo administrativo de consulta e dá outras providências”.

[8]  Cálculos baseados em dados CNJ, Justiça em Números, 2019.

[9] Sobre o tema “Da constitucionalidade da execução civil extrajudicial – Análise dogmática do PL 6.204/2019” v. o nosso estudo assim intitulado, in Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 517/544. Curitiba: Juruá Editora, 2020.


são muito bem recebidas e haverão de ser objeto de frutíferos debates e quiçá incorporadas ao PL, fato salutar numa democracia pluralista.

O que de certa maneira lamentamos são as resistências ao texto legal desfundamentadas, desarrazoadas, equivocadas e na contramão de toda a história – é justamente sobre essas questões que traremos neste breve ensaio, vejamos.

Alguns criticam a opção legislativa por atribuir aos tabeliães de protesto as atividades de agente de execução, com base nos seguintes argumentos: a) os tabeliães de protesto não são suficientemente preparados para o exercício dessas atribuições; b) número insuficiente de tabelionatos de protesto e falta de estrutura para dar andamento a milhares de demandas executivas; c) ninguém melhor preparado do que os advogados para exercer o papel de agente de execução (“a exemplo do que se verifica em diversos países da Europa”).

Com todas as vênias, essas objeções e críticas não se sustentam do ponto de vista jurídico, lógico e histórico pelas seguintes razões:

1º) Dispõe a Constituição Federal que “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”, enquanto “o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses” (CF, art. 236, caput e § 3º).

É assente também que esses concursos de provas e títulos revestem-se de elevado grau de dificuldade e complexidade jurídica, o que exige dos milhares de candidatos uma preparação muito qualificada, o que vai importar, ao fim e ao cabo, quando aprovados e no exercício de suas funções, na prestação de um serviço diferenciado em termos quantitativos e qualitativos.

Aliás, a prática dos últimos anos tem comprovado (com raríssimas exceções) que os serviços prestados pelas serventias extrajudiciais em todo o território nacional são de altíssima qualidade, fato atestado reiteradamente pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos Tribunais locais que realizam permanente controle, orientação e fiscalização dos notários, registradores e seus auxiliares. Inegável que a extrajudicialização no Brasil, em forma de delegação conferida às serventias extrajudiciais é uma realidade exitosa, que se perfectibiliza por disposição legal, conforme acima apontado, enquanto o CNJ, por seu turno, reconhece o papel fundamental que os notários e registradores têm desempenhado em prol da resolução dos conflitos de maneira célere e simplificada, atividades diversas até então prestadas apenas pelo Estado-juiz.[10]

O que não falta aos tabeliães de protesto é formação profissional (todos são bacharéis em direito) e conhecimento específico sobre a matéria alusiva aos títulos de crédito, o que lhes confere  qualificação diferenciada para o desempenho do elevado e difícil mister no exercício de suas atribuições legais materializadas, em caráter privado, por delegação do Poder Judiciário; esses profissionais que compõem as serventias extrajudiciais são uma espécie de longa manus do Estado-juiz, porquanto realizam atribuições públicas em caráter privado e de interesse geral, regidos por normas próprias.

São ainda os notários e registradores pessoas diretamente responsáveis pela prática de seus atos e de seus prepostos, na esfera administrativa, civil e criminal, o que reforça a garantia e exigência da prestação de um serviço público transparente, qualificado, célere e efetivo, somando-se ao fato de que são todos controlados e orientados permanentemente, repita-se, pelos


[10] Nessa linha, vale lembrar que a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento 65/2017, que estabelece as diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial nos serviços notariais e de registro de imóveis e, em 26 de março de 2018, baixou o Provimentos n. 67, que dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil; em 27 de junho de 2018, baixou o Provimento n. 72, que trata das medidas de incentivo à quitação ou à renegociação de dívidas protestadas nos tabelionatos de protesto do Brasil, e, mais recentemente, o Provimento nº 86, de 29 de agosto de 2019, que dispõe sobre a possibilidade de pagamento postergado de emolumentos, acréscimos legais e demais despesas, devidos pela apresentação de títulos ou outros documentos de dívida para protesto; Provimento 87 de 11 de setembro de 2019 que dispõe sobre as normas gerais de procedimentos para o protesto extrajudicial de títulos e de outros documentos de dívida, regulamenta a implantação da Central Nacional de Serviços Eletrônicos dos Tabeliães de Protesto de Títulos; Provimento 88 de 1º de outubro de 2019 que dispõe sobre a política, os procedimentos e os controles a serem adotados pelos notários e registradores visando a prevenção dos crimes de lavagem de dinheiro, previstos na Lei 9.613/98 e do financiamento do terrorismo, previsto na Lei 13.260/16.


Tribunais de Justiça locais, através de suas respectivas Corregedorias e pelo Conselho Nacional de Justiça.

2º) No que concerne ao número de servidores extrajudiciais aptos ao exercício das atribuições de agentes de execução, equivocam-se mais uma vez os que pensam ser insuficiente o número de tabelionatos de protesto; além dos 99 tabelionatos de protestos espalhados por todo o Brasil com atribuição específica, somam-se a eles todas as demais serventias que cumulam atribuições alusivas às notas, protestos e registros, perfazendo um total de 3.779 serventias extrajudiciais capilarizadas por todos os rincões do País, ao que se somam 3.779 serventuários substitutos (subtotal de 7.558 servidores).

A este resultado expressivo mister ainda acrescentar que, em média, cada cartório é dotado de 5 funcionários, totalizando em 18.895 prepostos que, somados aos titulares e substitutos, representam um efetivo de nada mais nada menos do que aproximadamente 26.453 servidores aptos a colocar em prática o procedimento de execução extrajudicial de títulos executivos conforme definido no PL 6.204/19.[11]

Ao confrontarmos o número de servidores extrajudiciais titulares e substitutos com o número total de Magistrados (estaduais e federais com competências diversas, juízes do trabalho e auditores militares) em todo o País (18.141),[12] chegaremos à conclusão muito simples no sentido de que o número de juízes de primeiro grau e varas com competência (específica ou cumulativa) para execução cível é muitíssimo inferior ao número de serventuários e serventias extrajudiciais distribuídas por todo o território nacional.

3º) Pelas razões expostas percebe-se facilmente os motivos que desaconselham a atuação do advogado como agente de execução. Importante frisar que não se questiona a qualificação dos ilustres colegas para o exercício de qualquer atividade dessa natureza em face da formação jurídica e da capacidade postulatória afiançada pela aprovação em exame para ingresso nos quadros da Ordem.

A questão nevrálgica é bem outra e respeita a fatores distintos, que não podem deixar de ser considerados em momento algum por aqueles que defendem entendimento contrário ao chancelado no PL 6.204/19. Explica-se: em primeiro lugar, os países europeus que encamparam a extrajudicialização (total ou parcial) das execuções não possuem um sistema cartorial idêntico ao brasileiro, que agrega elevada qualificação profissional, estruturas bem formadas e serviços prestados por delegação do Poder Judiciário, cuja fonte normativa é a Constituição Federal, com histórico indicador de que as atribuições desse jaez foram e continuam sendo prestadas – sobretudo nas últimas décadas – com resultados exitosos em prol dos jurisdicionados, por todos reconhecidos.

Em países do continente europeu que absorveram a técnica da execução desjudicializada total ou parcial (sob os auspícios do Conselho Europeu através da Recomendação 17/2003), os advogados prestam concurso público para exercerem as funções de “agente executivo” ou, tratando-se de sistema híbrido, são funcionários que, em linhas gerais, integram a estrutura do Poder Executivo ou do Judiciário, destacados para o exercício desta atribuição, com maior ou menor poder e autonomia, dependendo das configurações normativas delineadas para cada um deles, tendo como ponto comum o impedimento ou a limitação para o exercício da advocacia.[13]


[11] Dados oficiais obtidos através da Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR.

[12] Cf. dados obtidos no Anuário “Justiça em Números – 2019”.

[13] Sobre a prática e os sistemas alienígenas atinentes à “desjudicialização da execução civil”, em particular as atividades realizadas pelo hussier (França), pelo gerichtsvollzieher (Alemanha), pelo solicitador de execução (Portugal), pelo agenti di esecuzione (Italia), pelo kronofogde (Suécia) e pelo secretário judicial (Espanha), v. Flávia Ribieiro, Desjudicialização da Execução Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2013; Joel Dias Figueira Jr. “Execução simplificada e a desjudicalização do processo de execução: mito ou realidade”. Execução civil e temas afins – do CPC/1973 ao novo CPC – Estudos em homenagem ao Prof. Araken de Assis (coord. Arruda Alvim et. al.), pp. 576/604. São Paulo: Editora RT, 2014; Joel Dias Figueira Jr. & Alexandre Chini, & CHINI, “Desjudicialização do Processo de Execução de Ttítulo Extrajudicial”. CNJ e a efetivação da Justiça. Brasília: Editora OAB, 2019; Humberto Theodoro Jr. “As novas codificações francesa e portuguesa e a desjudicialização da execução forçada.” Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 461/483. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Rachel Nunes de Carvalho Farias. Desjudicialização do Processo de Execução – O modelo português como uma alternativa estratégia para a execução civil brasileira. Curitiba: Editora Juruá, 2015; Taynara Tiemi Ono. Execução por Quantia Certa – Acesso à justiça pela desjudicialização da execução civil. Curitiba: Editora Juruá, 2018; idem. Desjudicialização da execução civil: uma análise das experiências estrangeiras e do projeto de lei 6.204;2016”. Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 125/157. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Carolina A. Assis, “Desjudicialização da execução civil: um diálogo com o modelo português.” Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 75/103. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Eduardo Ribeiro & Rogério Mollica. “A desjudicialização na execução civil, a experiência portuguesa e o PL 6.204/19” Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 159/173. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Flávia Hill, “O procedimento extrajudicial p´re-xecutivo (PEPEX): reflexões sobre o modelo português em busca da efetrividade da execução no Brasil”. Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 305/322. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Flávia Ribeiro, “Proposta de desjudicialização da execução para o Brasil com base na experiência portuguesa – PL 6.204/19.” Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 323/360. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Humberto Martins, “Reflexões sobre a desjudicialização como instrumento para a eficácia da execução civil”. Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 451/459. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Marcos Rodrigues e Rafael Rangel, “O procedimento extrajudicial pré-executivo lusitano (PEPEX) e o projeto de lei 6.204/19: rumo à desjudicialização da execução no Brasil.” Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 635/649. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Marina Polli, “Propostas de reforma legislativa para a criação de procedimentos pré-executivos judicial e extrajudicial no ordenamento brasileiro: diálogo com o sistema português”. Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 673/700. Curitiba: Juruá Editora, 2020; Sérgio Castanheira, “O procedimento extrajudicial pré-executivo português”. Reflexões sobre a desjudicialiação da execução civil (coord. F. Ribeiro & E. Medeiros Neto), pp. 739/746. Curitiba: Juruá Editora, 2020.


É ingênuo pensar no exercício cabal da advocacia cumulada às atribuições de agente de execução diante de manifesta incompatibilidade,[14] cujo mote é a salvaguarda da imparcialidade e independência que deve nortear o agente, somando-se aos deveres éticos, as responsabilidades civil, administrativa e criminal, que se agregam em caráter pessoal (art. 22, Lei 8.935/94). E mais: os serviços prestados pelos tabeliães de protesto, tendo-se em conta os fins e a natureza, fundam-se em organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficiência dos atos jurídicos, sendo os respectivos profissionais dotados de fé pública (cf. art. 1º e 2º da Lei 8.935/94), o que em muito os diferencia.

Ora, se a Constituição Federal estabelece que o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos (CF, art. 236, § 3º), significa dizer que os interessados que preencherem os requisitos estabelecidas na Lei 8.935/94, art. 14 (especificamente o inc. V – “diploma de bacharel em direito”) poderão submeter-se aos exames de acesso às vagas oferecidas. Ademais, transformando-se em lei e entrando em vigor o PL em questão, paulatinamente ocorrerá o aumento de demandas nas serventias extrajudiciais, o que importará na necessidade gradual de criação de novos cargos e a realização de concursos públicos para o preenchimento das vagas, permitindo o acesso aos tabelionatos de protestos de títulos a todos os bacharéis de direito interessados.

Neste ponto, o PL desonera também os cofres públicos, na exata medida em que as serventias extrajudiciais não acarretam ônus financeiro algum para o Poder Judiciário, pois a remuneração de todos os notários, registradores e prepostos advém da arrecadação dos emolumentos estabelecidos em lei, bem como as despesas de custeio e investimento, de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços (Lei 8.935/94, arts. 20 e 21). Diferente é o que se verifica com a criação de cargos de juízes, comumente atrelados a novas unidades jurisdicionais e aos cargos de serventuários da justiça, ao que se agrega a ampliação da correspondente infraestrutura.

Por outro lado, os emolumentos arrecadados pelos extrajudiciais revertem em percentual também definido por lei local para o Poder Judiciário, a título de Fundo de Reaparelhamento e Modernização, taxas judiciárias, selos etc,[15] e, dependendo da lei de


[14]. Mutatis mutandis, não é por menos que o art. 25 da Lei 8.935/94 ao tratar “das incompatibilidades e dos impedimentos” dispõe, in verbis: “O exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão”.

[15] O percentual dos emolumentos e repasses por Estados varia, em média, de 6,54% (Distrito Federal) até 52% (Bahia). Exemplificativamente, vejamos o representativo de repasses ocorridos em alguns Estados durante o exercício de 2020: Acre (15% = R$ 3.740.222,10); Bahia ( 52% = R$ 166.567.581,36); Ceara (32,99% = R$ 91.409.297,37); Distrito Federal (6,54% = R$ 15.472.235,47); Espírito Santo (28% = R$ 88.606.308,96); Goiás (45% = R$ 326.678.805,96); Minas Gerais (39,66% = R$ 764.602.053,28); Rio de Janeiro (34% = R$ 514.638.767,02); Paraná (24,04% = R$ 163.231.155,71); São Paulo (38,49% = R$ 1.959.002.233,08) (cf. dados fornecidos oficiais fornecidos pela ANOREG).


regência estadual, esse repasse pode ainda aquinhoar o Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradoria Geral do Estado, Segurança Pública etc.

Em outros termos, significa dizer que o PL 6.204/19 não só reduz demandas (13 milhões de ações) e despesas decorrentes dos custos processuais para o Poder Judiciário (aprox. 65 bilhões de reais) como ainda eleva a sua arrecadação diante dos repasses de percentuais que incidem sobre os emolumentos percebidos pelos extrajudiciais. Não se pode deixar de considerar que o Judiciário continuará percebendo ainda as custas decorrentes dos acessos feitos pelas partes ou terceiros interessados (direta ou indiretamente) com a execução – se e quando necessário – como por exemplo, em embargos do devedor.

Outro ponto questionado respeita a celeridade do procedimento extrajudicial no confronto com a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para sanar os incidentes formulados pelas partes, dúvidas dos tabeliães de protesto, embargos à execução, dentre outros.

A esse respeito, descreve o CNJ (“Justiça em Números – 2019”) um quadro patológico crônico que se agrava a cada ano, apontando para as execuções (fiscais e civis) como sendo o crucial problema do Judiciário (64% de todas as demandas – aprox. 51 milhões de processos), com um tempo de tramitação extremamente longo, qual seja, 4 anos e 9 meses, considerando-se a data da distribuição até a efetiva satisfação (se e quando houver), enquanto os processos de conhecimento tramitam por tempo muito inferior (1ano e 6 meses)[16], indicativo claro de que as medidas executivas atípicas não atingiram, na prática, as expectativas depositadas nas inovações trazidas com o Código de 2015; essa situação caótica exige providências imediatas e efetivas voltadas à solução ou sensível minimização do problema posto, o que somente será obtido com a utilização de métodos autocompositivos e de desjudicialização das demandas.

É assente que pela própria natureza dos títulos executivos, os procedimentos judiciais desta espécie são basicamente administrativos, o que importa em pouca atuação jurisdicional do magistrado; por outro lado, são inúmeros os atos praticados por juízes e serventuários voltados à efetivação da execução em prol da satisfação perseguida pelo credor (citação, intimação, penhora, localização de bens, avaliação, alienação etc.), o que lhes absorve incontável tempo precioso.

O PL 6.204/19 oferece a oportunidade de desafogar o Judiciário com a supressão de milhares de demandas executivas civis cujos procedimentos importam, majoritariamente, em atos burocráticos de cobranças de dívidas, tendo como administrador o juiz togado; por conseguinte, reserva-se para o magistrado a prática exclusiva da típica e nobre atividade jurisdicional (dizer o direito) em processos ou incidentes que demandem verdadeira cognição (v.g. processos de rito comum ou especial, tutelas de urgência, incidentes em execução).

Por todas estas e tantas outras razões, esperamos que o PL 6.204/2019 tramite rapidamente e obtenha êxito no Parlamento e no Executivo, sem perdermos de vista que em tempos de pandemia Covid-19 o aumento de demandas já é uma realidade, exigindo maior atuação do Judiciário em temas relevantes. Nesse contexto, as execuções civis haverão de estar desjudicializadas e conduzidas pelos tabeliães de protesto (agentes de execução) que saberão processá-las com competência, independência, segurança, eficiência, rapidez, adequação, qualidade, sigilo, fé pública e responsabilidade (cf. arts. 1º, 3º, 4º, 22, 28, 30 e 38 da Lei 8.935/94).

Com todas as vênias, refutar o fenômeno universal da desjudicialização e combater os avanços trazidos para o sistema normativo brasileiro por meio do PL 6.204/19 é lutar de forma quixotesca contra moinhos de vento e, o que é mais grave, é desconsiderar as mudanças históricas exitosas colocadas em prática em países europeus (v.g. Portugal) e negar, de forma equivocada e até jocosa, a excelência dos serviços prestados, por delegação constitucional, pelos servidores extrajudiciais, sob a chancela da lei e o reconhecimento de todos, em especial do Conselho Nacional de Justiça.


[16] O CNJ denomina o problema da gestão judiciária aos feitos executivos como gargalos da execução, segundo se infere do “Justiça em Números – 2019”, item 4.3, pp. 126/141).

Informa-nos ainda o “Justiça em Números”, o ingresso de 3.059.486 novas execuções civis fundadas em títulos executivos extrajudiciais no último exercício, enquanto pendentes, da mesma espécie, 30.179.276 de demandas.


 

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