Melhim Chalhub·
O Superior Tribunal de Justiça selecionou para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos o Recurso Especial nº 1.871.911-SP.
Trata-se de ação de resolução de contrato de compra e venda de imóvel e financiamento com pacto adjeto de alienação fiduciária, proposta pelo devedor fiduciante sob alegação de incapacidade de pagamento, fundamentando-se em que a caracterização do negócio como relação de consumo oriunda de contrato de adesão lhe conferiria direito de denúncia do contrato e de restituição parcial das quantias pagas.
O pedido foi julgado improcedente por falta de interesse processual, já que a operação de crédito não é passível de resolução, de que trata o art. 475 do Código Civil, mas, sim, de execução do crédito seguida de excussão do imóvel nos termos do art. 27 da Lei 9.514/1997.
Confirmada a sentença em recurso de apelação, sobreveio o mencionado Recurso Especial, selecionado como representativo de controvérsia, tendo em vista a grande quantidade de processos em que se discute o modo de extinção forçada do contrato de crédito com garantia fiduciária, destacando-se que só no Tribunal de Justiça de São Paulo foram “analisados 160 reclamos por esta matéria em 2019 e cerca de 80 apenas nos 3 primeiros meses de 2020, o que indica importante aumento em seu impacto social e econômico.”
Colocam-se, de um lado, a jurisprudência já sedimentada do STJ, segundo a qual a execução do crédito garantido por propriedade fiduciária de imóvel sujeita-se ao rito especial dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997,[1] que contempla a excussão do imóvel em
[1] “A Lei nº 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor – CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial. 3. Agravo interno não provido.” (REsp 1.822.750-SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.11.2019).
leilão e a restituição do saldo, se houver, ao devedor, e, de outro lado, decisões divergentes das instâncias ordinárias, que julgam procedentes pedidos de resolução de operação de crédito fiduciário, com fundamento no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[2] e na Súmula 543/STJ,[3] impondo ao credor fiduciário a restituição de quantia arbitrada pela sentença, independente de leilão. Fundamentam-se essas decisões divergentes, não raras vezes, na caracterização dessa operação de crédito como “relação de consumo e contrato de adesão”, que conferiria ao devedor fiduciante direito potestativo de “postular a rescisão da avença, em virtude de sua incapacidade financeira para continuar honrando as parcelas”[4] ou mesmo em virtude de desinteresse em continuar no contrato.
Nesse contexto, não se questiona a incidência das normas do CDC nos contratos de promessa de compra e venda e de crédito com garantia fiduciária, quando caracterizem relação de consumo, pois, sendo lei geral de proteção dos consumidores, esse Código incide sobre qualquer contrato nos aspectos correspondentes à relação de consumo.[5]
“Recurso Especial. Direito civil e processual civil. Compra e venda de imóvel. Alienação fiduciária de bem imóvel. Pedido de resolução. Desistência da compra e venda. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no artigo 27, §§ 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 9.514/97 em detrimento da regra do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. Recurso especial provido.” (STJ, 1773047-SP, rel. Ministro Paulo de Sanseverino, DJe 22.5.2020).
[2] Lei 8.078/1990: “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.”
[3] Súmula 543/STJ: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.”
[4] Veja-se, a título de ilustração, acórdão que acolhe pretensão de “rescisão” de compra e venda com financiamento e pacto adjeto de alienação fiduciária mediante aplicação da Súmula 543/STJ, relativa à promessa de venda:
“Apelação – Compra e venda com alienação fiduciária em garantia rescisão contratual motivada pelo desinteresse do adquirente parcial procedência – Inconformismo da ré Acolhimento em parte. Deve ser afastada a tese das rés de impossibilidade da rescisão do contrato, com base na submissão a regime jurídico específico da Lei 9.514/97 – Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ainda que adquirido o imóvel com cláusula de alienação fiduciária – Propriedade não consolidada em nome da vendedora e credora fiduciária Possibilidade de o adquirente pleitear a rescisão do contrato com restituição das quantias pagas – Súmulas nº 543 do STJ e nº 1 do TJSP – Restituição das partes ao estado anterior – Devolução dos valores pagos, com retenção – Sentença que determina a devolução de 90% dos valores pagos – Acolhida em parte a pretensão da ré para majorar o percentual de retenção – Caso concreto que demonstra ser razoável a retenção de 20% dos valores pagos a título de indenização pelas despesas geradas, segundo entendimento do STJ e precedentes desta C. Câmara. Deram provimento parcial ao recurso.” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1007132-43.2016.8.26.0451, rel. Des. Alexandre Coelho, DJe 13.3.2019).
[5] MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2005, p. 618.
Os casos de aparente antinomia entre o CDC e normas de lei especial são solucionados com base nos critérios da especialidade e da cronologia,[6] prevalecendo a lei especial sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, como definido na tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 636.331-RJ, com repercussão geral.[7] Logo, também não se questiona a prevalência da Lei 9.514/1997, que tipifica o contrato de alienação fiduciária de bens imóveis, sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, por ser lei especial e posterior a esse Código.
O que se questiona são os efeitos do art. 53 do CDC, que é o fundamento invocado pelas decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP para substituir o procedimento de execução do crédito fiduciário pela ação de resolução do contrato de crédito fiduciário e para condenar o credor fiduciário a restituir quantia fixada em sentença (Súmula 543/STJ), negando vigência ao § 4º do art. 27 da Lei 9.514/1997, segundo o qual a restituição ao devedor fiduciante corresponde ao saldo, se houver, do produto da excussão da garantia.
O dispositivo em questão reproduz no CDC a norma da vedação do pacto comissório, aplicável tanto aos contratos de crédito com garantia real[8] quanto ao contrato de promessa de venda, devendo sua incidência adequar-se ao regime jurídico próprio de cada uma dessas espécies de contrato.
Assim, em relação à promessa de compra e venda em que haja cláusula que estipule a perda total das quantias pagas, o juiz a afastará na sentença que decretar a resolução e, de ofício, fixará a pena equitativamente, “tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio” (Código Civil, art. 413).
[6] “O CDC, como lei geral de proteção dos consumidores, poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual (…). Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC e mais específica for a norma ‘contrária’ da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade, e, então, é de ser afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova.” (MARQUES, Cláudia Lima, Contratos …, cit., pp. 632-633).
[7] Ao apreciar aparente conflito entre as normas gerais do CDC e as da Convenção de Varsóvia, que se classifica como lei ordinária especial, a respeito de indenização por extravio de bagagem, o Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331-RJ, com repercussão geral, fixou tese segundo a qual “devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista se tratar de lex specialis.”
[8] Código Civil: “Art. 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.”
“Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida.”
Decretada a resolução do contrato, segue-se uma relação de liquidação mediante (i) reincorporação do domínio pleno ao patrimônio do promitente vendedor, (ii) restituição das quantias pagas ao promitente comprador e (iii) ressarcimento, por parte deste, das perdas e danos decorrentes do seu inadimplemento. Nesse procedimento, o promitente vendedor restituirá parcialmente ao promitente comprador as quantias que este houver pago, retendo quantia correspondente ao ressarcimento das perdas e danos (Súmula 543/STJ e art. 67-A, §§ 1º ao 9º, da Lei 4.591/1964).
Já em relação aos contratos de crédito com garantia fiduciária a vedação do pacto comissório prevista no art. 1.364 do Código Civil produz efeitos distintos, conforme leis especiais (Decreto-lei 911/1969 e Lei 9.514/1997, entre outras) que vedam a apropriação do bem pelo credor fiduciário e determinam sua venda para satisfação do crédito em dinheiro, destinando ao devedor fiduciante o saldo, se houver, admitida a satisfação do crédito mediante adjudicação ou dação do bem em pagamento.
Neste caso, se, do leilão, não se apurar saldo após a satisfação do crédito, a lei não obriga o credor fiduciário a qualquer restituição, como observa Nelson Nery Jr.: “do caput do artigo [refere-se ao art. 53 do CDC] não decorre, porém, o direito à devolução das parcelas pagas. Apenas não se poderá pactuar a perda total das prestações pagas.”[9]
Assim é porque o art. 53 do CDC tem função idêntica à dos arts. 1.365 e 1.428 do Código Civil.
Todos eles têm unicamente função limitadora da autonomia privada, em razão da qual o dispositivo do CDC “deve ser lido como vedação a que o devedor, por cláusula contratual, renuncie ao direito de receber eventual saldo apurado quando da venda da coisa garantida a terceiros, como já se pronunciou o STJ,” como observa Francisco Eduardo Loureiro.[10]
Os efeitos do art. 53 do CDC, portanto, devem ser definidos mediante interpretação sistemática, em articulação ora com as normas dos arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil e com as do art. 67-A da Lei 4.591/1964 e do art. 32-A da Lei 6.766/1979, se se tratar de promessa de compra e venda de imóvel integrante de incorporação imobiliária ou de
[9] NERY JR., Nelson et alii, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentários pelos autores do anteprojeto – Comentário ao art. 53. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 10. ed., 2011, p. 622. GRINOVER, Ada Pelegrini, BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e, FINK, Daniel Roberto, FILOMENO, José Geraldo Brino, NERY Jr., Nelson e DENARI, Zelmo.
[10] LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado (comentário ao art. 1.364). Coord. Ministro Cezar Peluso. São Paulo: Manole, 12. ed., 2018, p. 1.357.
loteamento, ora com as do art. 1.365 ou 1.428 do Código Civil e normas especiais, quando se tratar de operação de crédito com garantia real.
Assim, especificamente em relação à alienação fiduciária de bens móveis infungíveis, Nelson Nery Jr. remete a interpretação do art. 53 do CDC ao Decreto-lei 911/1969, que restringe o direito do devedor fiduciante ao saldo, se houver, da venda do bem: “há previsão no art. 2º desse diploma, no sentido de permitir ao credor a venda do bem alienado fiduciariamente, a fim de que seja pago todo o débito do consumidor junto ao fornecedor, credor fiduciário, revertendo-se o saldo, se houver, para o patrimônio do consumidor.”[11]
Não se pode extrair desse dispositivo, portanto, interpretação que assegure ao devedor fiduciante direito de restituição por critério diverso daquele definido em lei, que corresponde à “diferença entre o valor da venda da coisa e o saldo devedor da obrigação garantida, mas não à devolução das parcelas pagas.”[12]
Também não há como equiparar o contrato de crédito fiduciário ao de promessa de venda para efeito da extinção forçada, como fazem as decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP, ao substituir a aplicação das normas especiais dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997 pela regra geral do art. 475 do Código Civil e pelo critério de restituição definido pela Súmula 543/STJ para as promessas de venda que caracterizem relação de consumo.
Assim, embora seja igualmente nula em contrato de promessa de venda e em contrato de crédito com pacto adjeto de alienação fiduciária, a chamada “cláusula de decaimento” produz efeitos distintos em relação à extinção forçada desses contratos, em conformidade com seus regimes jurídicos próprios, que definem modos peculiares de extinção do contrato, compatíveis com suas diferentes estrutura e função.
Observe-se que, por integrar a categoria dos contratos de transmissão da propriedade, a promessa de venda vincula o imóvel à pessoa do promitente comprador, ao investi-lo no direito de apropriação e de fruição do imóvel (Código Civil, arts. 1.417 e 1.418), enquanto a alienação fiduciária, por pertencer à categoria dos contratos de garantia real, vincula o imóvel ao cumprimento de obrigação, e não à pessoa do credor (Código Civil,
[11] NERY JR., Nelson et alii, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentários pelos autores do anteprojeto – Comentário ao art. 53. Rio de Janeiro: Gen-Forense, 10. ed., 2011, pp. 622/623 e 624. GRINOVER, Ada Pelegrini, BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e, FINK, Daniel Roberto, FILOMENO, José Geraldo Brino, NERY Jr., Nelson e DENARI, Zelmo.
[12] LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado, cit., p. 1.357.
art. 1.419).[13]
Por isso, enquanto a extinção forçada do contrato preliminar de promessa resulta compulsoriamente em reincorporação do bem ao patrimônio do promitente vendedor e restituição, total ou parcial, das quantias pagas, a extinção do contrato de crédito com garantia real resulta em excussão do bem para satisfação do crédito com o produto aí obtido (Código Civil, art. 1.361 e seguintes e 1.419), negada a apropriação do bem pelo credor (Código Civil, arts. 1.365 e 1.428), salvo mediante adjudicação ou dação em pagamento.
Outro traço distintivo que não pode ser desconsiderado é a autonomia da promessa de venda, em razão da qual esse contrato se forma, se executa e se extingue independente de qualquer outro, diferentemente da acessoriedade do contrato de alienação fiduciária, que se subordina a um contrato de crédito, em geral um mútuo, ou operação de crédito equivalente[14] do qual depende sua formação, execução e extinção. Por acessório, o contrato de alienação fiduciária segue esse contrato principal, e este é que dita o modo de extinção forçada da alienação fiduciária, excluindo-a do campo de incidência do art. 475 do Código Civil e sujeitando-a às normas gerais ou especiais sobre execução de crédito.
Essas substanciais diferenças entre as categorias a que pertencem esses tipos, além de outras peculiaridades, não podem deixar de ser consideradas na identificação dos distintos efeitos do art. 53 do CDC, mas, não obstante, as decisões que divergem da orientação jurisprudencial do STJ, em regra, simplesmente desprezam a necessidade de interpretação da nulidade da cláusula comissória em conformidade com o modo peculiar de extinção forçada de cada uma dessas espécies de contrato.
Ao apreciar pedidos de resolução de operações de crédito com garantia fiduciária, essas decisões, ao invés de proceder à interpretação da vedação da cláusula comissória com a atenção voltada para a natureza da operação de crédito e para a função acessória do contrato de garantia, limitam-se a (i) afastar a aplicação dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997 sem que
[13] Diz Lafayette que o direito real de garantia “consiste em sujeitar a coisa, precipuamente, por via dum laço real, ao pagamento da dívida.” (PEREIRA, Lafayette Rodrigues, Direito das Coisas. Edição histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, p. 5).
[14] Como se sabe, o mútuo é contrato translativo, pelo qual o mutuante transfere a propriedade de coisa ao mutuário e este se obriga a “restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade” (Código Civil, art. 586), bem como pagar os respectivos juros e demais encargos, se se tratar de mútuo de dinheiro (CC, art. 591). Tem natureza real, porque se aperfeiçoa no momento em que o mutuário se apropria da coisa emprestada, e é unilateral, porque gera obrigações somente para o mutuário.
tenha sido declarada sua inconstitucionalidade,[15] e (ii) decretar a “resolução” ou a “rescisão” do crédito fiduciário, equiparando os efeitos dessa anômala decisão aos efeitos da resolução de uma promessa de compra e venda.
Não se identifica nessas decisões qualquer fundamento capaz de justificar uma eventual requalificação do contrato de crédito ou a substituição do rito procedimental de sua execução pela ação de resolução, até porque não seria mesmo admitida, pelo menos em tese, a conversão injustificada de um contrato de crédito num contrato preliminar de transmissão de propriedade, dada a substancial distinção de suas estruturas e funções.
E é em razão dessa diversidade de funções que esses contratos são celebrados em momentos distintos nas atividades de incorporação imobiliária e de parcelamento do solo urbano.
Com efeito, a promessa de compra e venda, por ser contrato preliminar, é contratada no curso da construção e encerra seu ciclo quando concluída a obra.
Extingue-se por efeito da execução voluntária do contrato, mediante adimplemento da obrigação de pagamento do preço da promessa, pelo promitente comprador, e entrega do imóvel, pelo empreendedor.
Em seguida, celebra-se o contrato definitivo de compra e venda, e o ato dessa celebração, por si só, elimina todo e qualquer vínculo obrigacional correspondente à obrigação de transmitir a propriedade e de pagar o preço.
Se, concluída a obra, o promitente comprador não dispuser de recursos para cumprimento de sua prestação, toma financiamento bancário ou do próprio empreendedor e contrata, geralmente em um único instrumento, (i) o financiamento para quitação do preço, (ii) a compra e venda do imóvel, cujo preço o promitente comprador paga com os recursos do financiamento, e (iii) a hipoteca ou a alienação fiduciária em garantia da obrigação de resgatar o financiamento.
Inicia-se por meio desse instrumento o ciclo da operação de crédito com garantia fiduciária, subordinada a novo e distinto regime jurídico.
[15] Tais decisões podem caracterizar violação do art. 97 da Constituição Federal, nos termos do verbete nº 10 da Súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.
Constituição Federal: “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”
Súmula vinculante nº 10 do Supremo Tribunal Federal: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”
Essas considerações remetem novamente à controvérsia suscitada no REsp 1.871.911-SP, com a atenção voltada para as distintas particularidades estruturais e funcionais da promessa de venda e da operação de crédito com garantia real se projetam no campo do direito procedimental, “à luz de uma regra de adaptabilidade inerente à condição instrumental do processo,”[16] de que resulta a definição de meios específicos de extinção forçada do contrato, não se podendo cogitar de eleição arbitrária de qualquer procedimento que não seja compatível com as peculiares estrutura e função desses contratos, nem sendo admitida a negativa de vigência às normas que definem seus regimes jurídicos próprios, como fazem supor as decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP à sistemática do rito repetitivo.
Avulta entre essas peculiaridades a autonomia e a bilateralidade da promessa de venda, “em que cada um dos figurantes assume o dever de prestar para que outro ou outros lhe contraprestem,”[17] em contraste com a acessoriedade e a unilateralidade da operação de crédito para financiamento da compra e venda, na qual o credor fiduciário já prestou, ao liberar o crédito, só remanescendo nesse negócio jurídico a prestação de reembolso imputável ao devedor.
É em razão da bilateralidade das prestações, sua interdependência, que a promessa de compra e venda atende aos pressupostos da resolução estabelecidos pelo art. 475 do Código Civil,[18] dado que esse contrato encerra a estipulação de prestações recíprocas, em que cada uma das partes ocupa simultaneamente posição credora e devedora. Essa estrutura típica predispõe a promessa à ação de resolução[19] ou à ação de cumprimento, para a qual a legitimação é conferida privativamente “à parte lesada pelo inadimplemento.”
Diversa é a operação de crédito pela qual o banco ou o empreendedor concede crédito para pagamento do preço do imóvel.
Nesse caso, na medida em que já efetivou a única prestação dele exigível nessa espécie
[16] DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 8. ed., 2016, v. I, p. 251.
[17] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 12. ed., v. 26, § 3.126.
[18] Código Civil: “Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”
[19] “A lei tem em vista a interdependência das prestações, que é característica do contrato bilateral. A correspectividade das atribuições patrimoniais, fundamental no cálculo econômico dos contratantes, é que motiva a convergência de vontades, originadora da formação do contrato. O inadimplemento, operando como fator de desequilíbrio, afeta tal correspectividade.” (BESSONE, Darcy, Do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 327).
de contrato (isto é, a entrega do dinheiro ou a liberação do crédito), o credor fiduciário não tem legitimidade passiva para responder a uma demanda por inadimplemento dessa prestação (já efetivada), seja mediante resolução ou ação de cumprimento, como prevê o art. 475 do Código Civil;[20] de outra parte, não poderia ser reconhecida legitimidade ativa ao devedor fiduciante, porque esta é conferida à “parte lesada pelo inadimplemento”, e não por aquele que causou a lesão.[21]
Nesse caso, a impossibilidade jurídica da postulação de resolução do contrato de crédito com garantia real decorre não só da unilateralidade, que o afasta do campo de incidência do art. 475 do Código Civil, mas, sobretudo, da sua classificação como título executivo extrajudicial (CPC, 784, V),[22] cuja extinção forçada se faz mediante excussão do bem para satisfação do crédito com o produto da venda.
E é exatamente em razão dessa natureza jurídica que essa espécie de contrato de crédito é sujeita a procedimento de excussão previsto na regra geral do art. 1.364 do Código Civil e na regra especial dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/1997, que contempla procedimento extrajudicial pelo qual o inadimplemento absoluto da obrigação do devedor fiduciante acarreta a consolidação da propriedade no patrimônio do credor fiduciário,[23] seguindo-se leilão, para o qual é levada em consideração a avaliação realizada pela Prefeitura para cálculo do ITBI em data contemporânea à oferta pública,[24]
[20] Na atividade da incorporação é admissível a celebração de compra e venda do imóvel ainda em construção, com financiamento bancário ao adquirente. Nesse caso, considerando que a compra e venda de imóvel em construção é dotada de tipificação peculiar, instituída pelos arts. 28 e seguintes da Lei 4.591/1964, que contempla a obrigação do incorporador de construir, por si ou por terceiro, e entregar o imóvel em certo prazo, admitida prorrogação até 180 dias. Havendo, nesse contrato, obrigações duas prestações interdependentes, caso se caracterize o inadimplemento da prestação do incorporador, pode ocorrer a resolução da compra e venda, cujos efeitos atingem os contratos coligados de financiamento e de alienação fiduciária, dando causa à resolução conjunta de todos.
[21] Sabendo-se que o pedido de resolução é privativo da “parte lesada pelo inadimplemento”, se fosse admitida a resolução de operação de crédito aqui referida só o credor fiduciário poderia postulá-la, já que nessa relação já efetivou sua prestação e a única parte capaz de inadimplir é o devedor fiduciante.
[22] Código de Processo Civil: “Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais: (..); V – o contrato garantido por hipoteca, penhor, anticrese ou outro direito real de garantia e aquele garantido por caução.”
[23] O credor fiduciário torna-se proprietário pleno por efeito da consolidação, mas o imóvel permanece afetado ao cumprimento da obrigação, razão pela qual a lei lhe impõe a obrigação de promover sua oferta em dois públicos leilões para satisfazer seu crédito em dinheiro, com o produto aí obtido. Tratamos da matéria no item 4.2.3.1.
[24]Lei 9.514/1997: “Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá: (…); VI – a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; (…). Parágrafo único. Caso o valor do imóvel convencionado pelas partes nos termos do inciso VI do caput deste artigo seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão inter vivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão”.
admitindo-se a dação em pagamento para quitação da dívida.
Toda essa diversidade de natureza material e procedimental entre a formação, execução e extinção forçada dessas espécies de contrato, e a inviabilidade de equiparação dos efeitos da extinção forçada do contrato de crédito com garantia real fiduciária aos do contrato preliminar de promessa foi devidamente considerada na construção jurisprudencial do STJ, que confirma a sujeição da operação de crédito com garantia fiduciária imobiliária à regra especial da Lei 9.514/1997 e a afasta do campo de incidência do art. 475 do Código Civil e da Súmula 543/STJ.[25]
Essa orientação jurisprudencial repercutiu no plano da construção legislativa e motivou a aprovação da Lei 13.786/2018, que inclui na Lei 4.591/1964 o art. 67-A e na Lei 6.766/1979 o art. 32-A, cujos § 14 e § 3º,[26] respectivamente, esclarecem que a execução do crédito e a excussão da garantia real de bem imóvel, hipotecária ou fiduciária, sujeitam-se às normas gerais do Código de Processo Civil (arts. 771 e seguintes) ou às normas especiais (Código Civil, arts. 1.364, 1.365 e 1.419, e Lei 9.514/1997, arts. 26 e 27).
Todo esse contexto normativo e jurisprudencial é trazido à baila no momento em que se debate sobre o tema objeto da afetação do REsp 1.871.911-SP.
A superação dessa controvérsia pelo rito dos recursos repetitivos mostra-se efetivamente indispensável para afastar dúvidas e incertezas decorrentes de aplicação uniforme da norma do art. 53 do CDC aos distintos contratos de promessa de compra e venda e de
[25] Ressalve-se, contudo, na atividade da incorporação imobiliária, a hipótese de celebração de compra e venda do imóvel ainda em construção, com financiamento bancário ao adquirente. Nesse caso, a compra e venda é dotada de tipificação peculiar, instituída pelos arts. 28 e seguintes da Lei 4.591/1964, que contempla a obrigação do incorporador de construir, por si ou por terceiro, e entregar o imóvel em certo prazo, admitida prorrogação até 180 dias. Há, nesse contrato, duas prestações interdependentes, cujas vicissitudes repercutem sobre os demais contratos, em prejuízo à função comum dos contratos coligados. Nesse caso, a inexecução da prestação do incorporador no prazo convencionado pode caracterizar inadimplemento absoluto e legitimar o adquirente a, se a considerar inútil, postular a resolução da compra e venda, cujos efeitos atingem os contratos coligados de financiamento e de alienação fiduciária, dando causa à resolução conjunta de todos.
[26] Lei 4.591/1964: “Art. 67-A. (…). § 14. Nas hipóteses de leilão de imóvel objeto de contrato de compra e venda com pagamento parcelado, com ou sem garantia real, de promessa de compra e venda ou de cessão e de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, realizado o leilão no contexto de execução judicial ou de procedimento extrajudicial de execução ou de resolução, a restituição far-se-á de acordo com os critérios estabelecidos na respectiva lei especial ou com as normas aplicáveis à execução em geral.”
Lei 6.766/1979: “Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens: (…). § 3o O procedimento previsto neste artigo não se aplica aos contratos e escrituras de compra e venda de lote sob a modalidade de alienação fiduciária nos termos da Lei n° 9.514, de 20 de novembro de 1997.”
crédito com pacto adjeto de alienação fiduciária, mediante interpretação que considere a distinta natureza jurídica desses contratos, à luz da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 636.331-RJ e da jurisprudência do STJ.
E, na medida em que, além do interesse individual presente em cada demanda relacionada ao tema, os direitos reais de garantia envolvem o interesse coletivo refletido pela importância econômica e social do crédito, justifica-se a uniformização da jurisprudência mediante fixação de tese dotada de eficácia erga omnes que ponha fim à controvérsia e assegure a efetividade da alienação fiduciária de bens imóveis, à luz de parâmetros de previsibilidade e calculabilidade[27] indispensáveis à estabilidade do mercado de crédito e à dinamização da economia.
[27] “Os indivíduos têm o direito de poder contar com o fato de que aos seus atos ou às decisões públicas concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre normas jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e assinados por estas mesmas normas.” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 250).